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19.5.05

Mário Sá-Carneiro - A Confissão de Lúcio

 Sento-me. Enquanto vou dando voltas à colher e beber o meu café, olho para a figura que está à minha frente. Um jovem quase velho, escreve com sofreguidão mais uma carta. Não me vê. Sou um fantasma, um fantasma de mim, um fantasma dele, um fantasma de todos. Estamos num mundo que não é o nosso não é Mário? Deixa-me ver a quem escreves, ah!... é a Ponce de Leão teu amigo dos tempos de escola. Permites-me que a leia? Obrigado!


Lisboa - Setembro de 1913
Dia 26


Meu querido amigo,

Não te zangues. isto é sem cerimónia. Perdoa...
Bem sei que tens concurso – e casamento (os bustos não esquecem: 1 aproxima-se).

Mas ouve:

Se amanhã à noite sábado quiseres e puderes gostava que viesses a minha casa às 8 1/2 9 horas. Gramarias (sozinho com o F. Pessoa) a célebre «Confissão de Lúcio» em cuja primeira página o teu nome se imprime.

Era-me muito agradável que viesses pois é lamentável que tendo eu escrito esse conto para ti, não sejas tu o primeiro a ouvi-lo. Mas nota bem: eu compreendo optimamente os teus afazeres e portanto não me zango nada se não puderes vir [no texto: «vires»]. Mas faz um esforço, sim? Sacrifica-me duas horas. Agradecer-tas-ei como uma vida inteira!...

Adeus, perdoa-me!

Um grande abraço do

Sá-Carneiro

P. S. – Não venhas se não puderes de todo. E não me zango!

Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio:

"- Ah! meu querido Lúcio - tornou ainda o poeta -, como eu sinto a vitória de uma mulher admirável, estiraçada sobre um leito de rendas, olhando a sua carne toda nua... esplêndida... loura de álcool! A carne feminina - que apoteose! Se eu fosse mulher, nunca me deixaria possuir pela carne dos homens - tristonha, seca, amarela: sem brilho e sem luz... Sim! num entusiasmo espasmódico, sou todo admiração, todo ternura, pelas grandes debochadas que só emaranham os corpos de mármore com outros iguais aos seus - femininos também; arruivados, sumptuosos... E lembra-me então um desejo perdido de ser mulher - ao menos, para isto: para que, num encantamento, pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho...
(...)
...uma noite, sem me dizer coisa alguma, ela pegou nos meus dedos e com eles acariciou as pontas dos seios - a acerá-las, para que enfolassem agrestemente o tecido ruivo do quimono de seda.
E cada noite era uma nova voluptuosidade silenciosa.
Assim, ora nos beijávamos os dentes, ora ela me estendias os pés descalços para que lhos roesse - me soltava os cabelos; me dava a trincar o seu sexo maquilhado, o seu ventre obsceno de tatuagens roxas...
E só depois de tantos requintes de brasa, de tantos êxtases perdidos - sem força para prolongarmos mais as nossas perversões - nos possuíamos realmente."

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